Êxtase, repulsa e euforia são algumas das expressões mais adequadas para descrever o turbilhão de reações suscitadas pela exibição do polêmico e controverso "A Paixão de Cristo" (The Passion of the Christ, Estados Unidos, 2004), de Mel Gibson. Tudo ou quase tudo já se falou a respeito do conteúdo da película. Contudo, a carnificina extensa e o impacto causado pelas cenas chocantes e interpretadas em latim e aramaico impediram que o espectador médio passasse do nível da sensação para o da percepção.
Nesse contexto, é mais relevante interpretar o efeito do que a forma, apesar de ambos estarem interligados. A recepção diversa que "A Paixão" teve em vários segmentos religiosos revela que estes demarcam cada vez mais seus espaços ideológicos, o que, inevitavelmente, gera guerra e preconceito.
Uma análise pormenorizada sobre a recepção de "A Paixão" revela duas espécimes dessa demarcação. A primeira, mais óbvia e mais propagada, é a visão da comunidade judaica. Segundo a maioria dos rabinos, o filme reafirma a idéia de que foram os judeus os verdadeiros e únicos responsáveis pela crucifixão de Jesus, suscitando o anti-semitismo.
Ora, o filme não é anti-semita. Enfatiza, é verdade, a participação histórica dos judeus no assassinato, mas não busca responsabilizá-los. O próprio Gibson garante que não teve nenhuma intenção preconceituosa ao produzir o filme. Infelizmente, o purgatório dos católicos e o inferno dos judeus está repleto de boas intenções. "A Paixão" não escapa dessa máxima.
A perseguição e o sofrimento milenares ainda fazem parte do cotidiano dos judeus. Somente o Holocausto seria um bom exemplo. Como o cinema, por si só, pressupõe certa subjetividade, o que dá vazão a várias interpretações da mesma imagem, é compreensível que as cenas de Jesus sendo espancado por uma turba judaica e a clara exigência de sua morte por seus líderes religiosos reabram feridas que, vez ou outra, ainda insistem em sangrar.
Na defensiva, essa gente denuncia que ainda não se perdoou pelo triste episódio e que o preconceito, por mais paradoxal que isso possa parecer, renasce em seus próprios corações dia após dia. Os judeus demarcam, assim, seu próprio espaço.
** DE UM CATÓLICO PARA EVANGÉLICOS
Num foco distante da Palestina, "A Paixão de Cristo" também denota a demarcação dentro da própria religião cristã. Ironia: apesar de Gibson praticar o catolicismo ultraconservador, o grande público apreciador de seu filme concentra-se na ala evangélica. Recepção no mínimo curiosa, principalmente quando se constata que os evangélicos sempre condenaram a produção de Hollywood.
Com o lançamento do filme no Brasil, ocorreu verdadeira fidelização por parte desse segmento. Registraram-se peregrinações de grupos evangélicos ao cinema, compra e aluguel exclusivo destes por alguns segmentos e a exibição pública no interior de seus templos durante a sexta-feira da Paixão.
Ao analisar-se o perfil da película e do discurso evangélico em geral, percebe-se que ambos se assemelham. O primeiro faz uma leitura das doze últimas horas da vida de Jesus, com ênfase em sua dor física, e deixa em segundo plano sua vida e seus ensinamentos; o segundo - apesar de protestos contrários - faz basicamente o mesmo. Apelos em pregações, produção literária e musical e aplicação para a vida cotidiana sempre acabam levando para a cruz, seja qual for o caminho.
Adicione às similaridades o alto grau de emoção e sensação que ambos, filme e culto evangélico, proporcionam. Fiéis dirigem-se ao cinema como quem vai a um culto: emocionam-se, choram, ensaiam conversões.
Por outra senda se enveredam os membros da Igreja Católica. Para seus praticantes mais conservadores (com exceção do próprio Gibson), a forte carga de violência é desnecessária. Na doutrina católica, a cruz é um pouco menor, a fim de dar espaço para a santidade de Maria, ausente na película. Já a conversão emocional é substituída pelas rezas e terços, também inexistentes em "A Paixão". Por fim, o filme acerta na divulgação de duas de suas doutrinas, o lenço de Verônica e o Santo Sudário. Mas não é dos melhores; é preferível o poder francamente catequizador de "Maria, Mãe do Filho de Deus".
Sem preconceitos. Estes são apenas dois vieses do cristianismo escolhidos pelo segmento evangélico e católico, respectivamente, para visualizar a fé. O fato é que uma observação atenta do público de "A Paixão" demonstra o abismo ideológico entre as denominações. O filme dá, assim, munição para a guerra entre católicos e evangélicos.
** CINEMA ECUMÊNICO?
Mel Gibson não pretendia ser ecumênico; a produção cinematográfica também não. Vieses e estereótipos são ingredientes garantidos ao se tratar de cinema. O problema é que produções religiosas sempre causaram e sempre causarão espasmos e vertigens. O grande problema é que a polêmica não traz remissões, mas espaços demarcados com cada vez mais ênfase.
Serve de consolo que o próprio Cristo afirmou que não veio trazer paz, mas sim espada. Ao que parece, Gibson achou-se no direito de agir sob o mesmo princípio.
Fernando Torres é jornalista e editor assistente na Casa Publicadora Brasileira.
5 comentários:
Serve de consolo que o próprio Cristo afirmou que não veio trazer paz, mas sim espada. Ao que parece, Gibson achou-se no direito de agir sob o mesmo princípio.
Apropósito:
Mateus 10
34
Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada;
35
Porque eu vim pór em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra;
36
E assim os inimigos do homem serão os seus familiares.
37
Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim.
38
E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim.
39
Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, achá-la-á
O que acha disso Michelson?
Pois para mim, coisa boa não é...
Vinicios
As coisas espirituais se discernem espiritualmente, Vinicios. O dia em que você se converter, experimentará o gosto frio do aço da espada (da perseguição, da intolerância, da humilhação, etc.). Por outro lado, experimentará a paz e a alegria que este mundo não pode dar.
As coisas espirituais se discernem espiritualmente, Vinicios. O dia em que você se converter, experimentará o gosto frio do aço da espada (da perseguição, da intolerância, da humilhação, etc.).
Bem se os problemas forem perseguição, intolerância e humilhação então, dependendo do meio onde você está (como o religioso) praticamente são inevitavelmente ossos do ofício (como cda atividade também tem a sua!), nada mais natural...
Outra coisa, quando eu me "converter"??? Quanta presunção!!!
Só digo que, se um dia me tornar religioso sem que haja provas ou justificativas VERDADEIRAS para tal (que igualmente toda a humanidade possa contemplar), pode ter certeza que ou eu estaria completamente louco ou extremamente desesperado com algo na minha vida. Seja qual for essa motivação, uma coisa eu digo, NÃO SERIA POR VIAS JUSTIFICAVEIS E RACIONAIS, ou seja seria exatamente um DELÍRIO!!!
Um delírio que desenvolvemos para nos ajudar a condicionar o sofrimento e o desespero em nossos momento difíceis, mas que em sí passa LONGE da realidade, apenas isso!
Por outro lado, experimentará a paz e a alegria que este mundo não pode dar.
Não parece ser um bom negócio (e nem mesmo justo)...
E você falando assim, parece que o mundo como o conhecemos só nos oferece sofrimento (o que é algo altamente subjetivo e relativo).
Só falo para você, um sofrimento, uma humilhação, um desprezo... Se você pode conseguir aproveitá-lo de alguma forma e aprender com ele (já que a consequência do dano é praticamente inevitável) você já converteu a situação a seu favor.
Mas, se for o seu caso, o que exatamente você extraiu dessas situações? Temor a Deus?
Seja o que for, uma coisa eu digo, se estiver passando por isso por causa de suas crenças pessoais, definitivamente não é algo que efetivamente vale a pena levar a sério. Provavelmente apenas o satisfaça psicologicamente, apenas isso... No final, concluo que você não aproveitou ou aprendeu algo em suas desvantagens.
Ah, voltanto ao versículo, o que acha dessas partes? Quem em sã consciência ou que não tenha a mente bloqueada pela religião consegue ver claramente que em qualquer circunstâcia imaginável e que tange a realidade, esse versículo expressa algo absurdamente impraticável e egoísta, fora a autoproclamação do suposto homem Jesus, que estando são, nem em sonho daria ouvidos a palavras tão lamentáveis.
Para mim pelo menos esses versiculos estão claros Michelson, se existe algo se complementar ou a se justificar gostaria de ver, mas moralmente isso é uma desumanização indiscutível. E outra, existindo um Deus ONIPOTENTE e que realmente AME os seres humanos, os animais e tudo que teria criado, EU CREIO que seria IMPOSSIVEL que esse faria mal a vida de qualquer forma que fosse!
Vinicios
Esse filme é fiel ao relato bíblico.
Tive que tomar água com açúcar depois de vê-lo, pois é muito forte.
É impossível ver sem fazer o exercício da reflexão.
Excelente!
filme bom, mas com muito simbolismo de hollywood
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